fevereiro 09, 2009

Ana e a mãe de acolhimento: a simplicidade de só amar

Ana era uma criança que desde os 2 meses não conhecia ninguém tão dedicada como a senhora a quem chamam “Mãe de Acolhimento”. O nosso Direito encara-a como uma pessoa adulta que recebe dinheiro para manter viva outra pessoa mais pequena. A Ana fez três anos e essa pessoa ficou sem o trabalho de a manter viva: assim deve ser encarado o facto pelo Tribunal de Menores.

Mas sabemos o que é um bebé de 2 meses.
  • Quantas centenas de fraldas mudou?
  • Quantas vezes mostrou orgulhosamente a Ana à vizinha?
  • Quantas vezes a beijou, lhe deu comida, lhe ajeitou a roupa da cama, lhe sorriu e lhe falou com mansidão?
  • Quantos sinais, quase imperceptíveis, aprendeu a interpretar e como reagir a eles?
  • Quantas vezes interrompeu o sono para medir a febre e perceber que ela respirava?
  • Quantas vezes se maravilhou com a pequena a virar-se na cama e arrastar-se até um pequeno brinquedo ali à sua frente?
  • Quantos milhares de sorrisos recebeu em troca ou se comoveu vendo a miúda debater-se em alegria pela sua chegada?
  • Quantas vezes articularam as primeiras sílabas até “dar certo”?
  • Quantas vezes a viu maravilhada pelo piscar das luzes da árvore de Natal?
  • Quantos truques para dar a papa e a sopa foram usados?
  • Quantas vezes a amparou para dar os primeiros passos?
  • Quantos “tarecos” moveu para outros locais pois podiam agora ficar ao alcance da Ana?
  • Quantas vezes ao ver alguns sinais, agora mais perceptíveis, foram necessárias para a ensinar a usar o bacio?
  • Quantos abraços recebidos e dados?
  • Quantas vezes a viu adormecer devagarinho no seu colo?
  • Quantas palavras ensinadas?
  • Quantas horas não fez nada observando a Ana absorta nos seus brinquedos e entretenimentos?

De repente vem um "técnico" de qualquer coisa e leva a Ana. A Ana agora já é apetecida: fala, sabe usar o bacio, brinca, sabe identificar alguns animais. A Ana é agora uma criança com três anos e, de repente, deixou de estar bem com quem vivia. A Ana agora vai deixar de ver a sua âncora, a cara de todos os dias que tudo lhe ensinou, e não entende a razão.

Pelo meio um "tecnocrata" explica que o processo de selecção de mãe de acolhimento e adoptante são processos diferentes, como se isto fosse relevante para quem amou e foi amada. A “mãe de acolhimento” é apenas uma ferramenta nesta máquina despudorada que tenta remendar a porcaria que o Estado tem feito: não se pode habilitar mesmo depois de comprovada competência durante três anos seguidos. Três anos são muito tempo, muita emoção, muitos laços e tanta ternura que só a morte poderá soltar.

As lágrimas da mãe de acolhimento poderiam ensopar todos estes códigos, derreter e consumir as letras que os compõem, fazê-los numa papa informe a ser lançada sobre os legisladores. Mas nada disto conta. A Ana vai continuar a viver e a mãe de acolhimento Lurdes Osório morreu um pouco. Eu sei que ser mãe de acolhimento não garante sempre condições de mãe adoptiva mas quem ama deve ser respeitado.

Obrigado por teres amado Lurdes Osório. Obrigado por seres generosa e simples .... tão simples que não calças Prada, não tens amigos bem colocados, não tens cartões de visita, não tens advogados importantes e os juízes não ouvem a tua voz nem as tuas súplicas. Só tens direito a amar... Salomão era mais sábio.

Um beijo para ti Lurdes Osório.

1 comentário:

margarida disse...

Começa-se com objectividade. Frieza, até. Impõe-se isso; é-se ‘profissional’.
Os papéis estão definidos, o argumento decorado, os gestos ensaiados.
Ser-se peça da engrenagem é um desígnio natural, mais ou menos aceite, mais ou menos entendido. Ser-se ferramenta útil, como idiota útil, é uma utilidade, como outra qualquer.
Ser-se útil, é uma forma de se sobreviver.
Mas depois acontece o amor.
Os componentes da máquina amaciam-se e escorre óleo, que é sangue, e acelera o motor, que é coração, e vertem lágrimas, que são linfa.
Ana apaixona-se pelo ser que lhe confia o destino. Ana perde-se nesse amor sem regresso e pouco adianta quando lhe atiram: “As nódoas negras, também fazem parte do teu “património emocional”, o que acontece é a valorização que delas fazes. De negras passam, depressa, à cor da pele. O que fica foi o que de bom aconteceu e, principalmente, o que de melhor virá a acontecer. A vida tem o encanto de nos proporcionar de tudo, com a particularidade de nos mostrar sempre as suas duas faces.”
Ana não entende o que ouve, está de braços caídos, sem fé nem esperança. Sem o seu amor pequenino e verdadeiro. Sem vida.
Volta à linha de montagem, Ana. Volta ao ruído maquinal dos dias, sem risos nem música, sem flores nem pássaros.
Volta à realidade, criatura, que a vida são dois dias e toda a gente sabe mais do que tu. Toda a gente tem razão, menos tu.
Existem códigos, sabias? E protocolos e leis. E homens, acima disso tudo, a acenar-te o dedo e a enrugar a testa e tu cala-te, Ana, cala a dor, engole a mágoa, esquece quem amas e sobrevive.
Sobrevive, mulher, que a vida são dois dias e os teus já vão a meio, abeiras-te do fim.
Não lhes dês glórias, não chores, muito menos grites ou estendas a mão.
É tudo mentira, falam do amor, mas é mentira, querem é os códigos e as leis a as pessoas pequeninas a crescer como cordeiros. O amor a mirrar como fruta caída. O silêncio.
Não os olhes, não os acuses, eles não aguentam a culpa, não dormiriam.
Assim, não durmas tu, mulher, rebola-te na cama entre dores e chora então, grita o roubo, o que te tiraram sem dó. A falsidade, a abjuração.
Abraça a falta desse amor e recorda. Vive de memórias, que é o que te resta. Isso e a danação de te injuriarem sem piedade. Soluça no silêncio que isso não se fazia nem a um cão. Mas só para ti, para o teu coração enegrecido. Não contes nada, não digas nada, tenta acima de ti mesma, não sentir mais nada.
Não lhes mostres como te devastaram, não adianta – olha que o que vale são as regras. Cumpre-as.
Qualquer tempo chega para querer. Três anos, então…
Ana, tens de esquecer. Aqui mandam homens, com seus ditames e caprichos.
Justiça e dignidade, só no Além.